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  • Foto do escritor: Núcleo GenI - Gênero e interseccionalidade
    Núcleo GenI - Gênero e interseccionalidade
  • 31 de out.
  • 5 min de leitura
Cineclube e Clube de Leitura Geni em edição discutindo Ela Nasceu Lilás & Outras Mulheres. Fonte: arquivo pessoal.
Cineclube e Clube de Leitura Geni em edição discutindo Ela Nasceu Lilás & Outras Mulheres. Fonte: arquivo pessoal.

O Núcleo GenI Teve o prazer de contar com a presença da autora Leila Tabosa em seu V Cineclube e Clube de Leitura, que discutiu o livro Ela Nasceu Lilás & Outras Mulheres e o filme Quando Chegar a Noite, Pise Devagar, dirigido por Gabriela Alcântara. Mulheres lotaram as vozes do grupo, que tinham contos e recontos suficientes para passar a noite no auditório.


O livro de Leila carrega um peso do início ao fim, são quilos de vozes silenciadas durante gerações. Para nos introduzir a essa jornada, a professora doutora Daiany Dantas entrega um prefácio sensível e forte. Leia a apresentação nos próximos parágrafos.


 

Tchekhov reforça suas propostas de realismo. Aconselha escritores a descreverem quadros de modo a que o leitor, ao fechar os olhos, possa recompô-los na mente. E a não pintar quadros que nunca viu, porque a mentira é ainda mais inoportuna na estória que numa conversa. (Nádia Gotlib, 1990).

 

Para mim não se trata de contar a história da minha vida, nem de me livrar dos segredos dela, e sim de decifrar uma situação vivida, um acontecimento, uma relação amorosa, e desvelar assim algo que apenas a escrita pode fazer existir e acontecer, talvez, em outras consciências, em outras memórias. (Annie Ernaux, 2023).

 

Como escrever de dentro da pele de uma mulher para outra? Como pintar uma paisagem tão íntima que chega a ser duvidosa. E ao mesmo tempo tão comum, que é incrivelmente familiar.


Ela nasceu Lilás & outras mulheres é um livro de memórias tingidas dessa honestidade que Gotlib evoca ao citar Tchekov. E da corajosa recriação de lembranças tão vívidas que possuem cor e contraste de vísceras. Memórias que ecoam o passado de Leila Tabosa, suas ruas tão familiares a quem conhece o contexto periférico de cidades metropolitanas nordestinas, como Fortaleza. Grandes demais, com feiras, aglomerações, pontos de ônibus e táxis que levam a paraísos possíveis, ainda que artificiais, como aeroportos e shoppings.

Ruas que tem limo, lama, poeira, deixam marcas nos pés, nos vestidos reservados apenas às ocasiões festivas. Muros que ocultam sons. Neles dependuram-se memórias resilientes à umidade das casas. Lugares de onde ecoa o maquinário urbano, que veste o dia a dia como um adágio ruidoso. Mas, lá, as pedras também cantam, como pingos de chuva, e viram malabares nas mãos de uma menina. Uma menina de olhar furtivo que busca acolhida nas pupilas rotas de uma boneca abandonada. Enxerga o horizonte além dos prédios, sem perder de vista a casa da mãe, o trabalho provedor e oportuno da tia, as avós, as madrinhas.

Canta o desejo de vida, de transubstancialidade de um tempo e um espaço que já não se resume ao luto, mas se recria em sobrevivência. Entoa uma cantiga de perda e de continuidade. Reconhecível a tantas e tantas meninas e mulheres, como se fora sua própria história.


Como outras de suas contemporâneas, e aqui menciono Ernaux, que escreve uma literatura historiográfica, antropológica, confessional, porém uma escrita de reinvenção e sobrevivência, uma memória do comum que não se pretende documento nem metáfora, mas um modo de abordar a realidade posta e inquestionável pela esfera da criação, Leila Tabosa escreve sobre o que conhece, de forma tátil, expandida, presente, e responsiva ao que o passado lhe entrega.


Ao não admitir naufragar sob o destino previsto, emerge. E, a partir daí, ancora. Não apenas o seu navio. Torna-se porto. Dá as mãos a inúmeras de nós que lutam contra a submersão. Não somatiza nem convulsiona diante do social, mas escreve sua sobrevivência sobre e em torno dele.


Também usa a palavra como faca, abrindo a barriga do esquecimento que reduz tantas de nós a um rito sem voz, recusa o destino de enigma e estatística. Do seu corte desabam pérolas, brilhos, onde se pretendia apenas o sangue pisado.


Falar desde as vísceras, sendo uma mulher que escreve, é não admitir que o sangue derramado seja de morte e esquecimento. A literatura de Tabosa é um parto onde muitas de suas personagens se amparam. Um atravessar a fronteira que por vezes matiza o luto de nascer menina num dos países com um dos maiores índices de violência contra mulheres e feminicídio do mundo.  


Teses e autos processuais registram tecnicamente as etapas do ciclo da violência de gênero. Engendram as origens históricas e estruturais. Mas aqui é o grito atávico de uma criança que se nega a não nascer que nos conta uma história. De uma fuga primeva, instintiva. Chorar é nascer. Mas é também renascer. É estar a par de um ciclo, mas também projetar a ruptura deste. É rasgar-se, romper-se. Mas inteirar-se de um desejo vivo de não sucumbir. Por um “sussurro revoltoso e constante” ela vive, está aqui. Não irá silenciar.


As meninas de Leila se encantam com o lixo, com os restos. As bonecas de feira vinham em famílias amarradas em laços de fita, mas ela acolhe sua boneca, como se entende acolhida e acolhedora. Num texto repleto de silêncios e pequenas elipses, que costuram as fitas dos encontros que a resgatam dos golpes de vida, emolduram o álbum da família que a abraça. A vulnerabilidade de suas personagens não é gráfica. É sensorial, por isso permite o sentido de encontro e ancoragem. Uma menina brinca de pedrinhas e escuta as canções do Balão mágico quando descobre que sua mãe sobreviveu a uma tentativa de feminicídio. O algoz: seu pai.


Os jogos e as canções, sua fuga. A vida, de esconde-esconde. Por algum motivo, desejada, mesmo com seus pedregulhos. E é na comunidade que as mulheres se escondem, mas também se inteiram do que é preciso fazer para dar vida aos aflitos e machucados. Avós, mães, tias, vizinhas, diretoras de escola, no ofício estrutural de resguardar o mínimo. Mesmo a rezadeira em seu papel-portal de trazer um alento que conecte ao divino, garante o sagrado como suporte. Alguma sabedoria que impeça as precariedades a que chamam destino. E traga a promessa de árvores da felicidade que possam crescer nos quintais de qualquer infância. Comida quente, que não precise de tanta locomoção em pleno sol do meio-dia, rumo ao esquivo local de trabalho da tia.


Uma vida sem agressões, sem uma masculinidade recoberta de açoite como única propulsão de liderança. Uma vida que dança de pés descalços, sem lago, sem cisnes, mas livre. Onde o vestido azul herdado num Natal de bairro não tenha os seus sonhos interrompidos antes da meia noite.


Uma vida equilibrista, bailarina, circense. Que aprende do mínimo a sua expansão. Que fala de dentro da pele de uma mulher para a outra: Ela nasceu lilás. E está viva. Chora. E dança. E o seu canto tem todas as cores do pôr do sol.

 
 
 
  • Foto do escritor: Núcleo GenI - Gênero e interseccionalidade
    Núcleo GenI - Gênero e interseccionalidade
  • 6 de fev.
  • 3 min de leitura

Atualizado: 31 de out.


III Cineclube e Clube de Leitura do Núcleo GenI. Fonte: arquivo pessoal.
III Cineclube e Clube de Leitura do Núcleo GenI. Fonte: arquivo pessoal.

Na edição de julho de 2025, o Núcleo GenI se reuniu para discutir sobre o livro Originárias: Uma antologia feminina de literatura indígena, de Trudruá Dorrico e Mauricio Negro, e o documentário As Hiper Mulheres, de Takuma Kuikuro, Leonardo Sette e Carlos Fausto. O salão do Espaço Mon Petit se encheu de ideias e reflexões, que foram para além dessas paredes.


Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem, Júlia Batista produziu um resumo sobre o livro, destacando dois dos seus contos: Nãna e os potes de barro, de Chirley Pankará, e Kauny e sua oncinha, de Auritha Tabajara. Acompanhe as palavras de Júlia sobre o livro a seguir.


A antologia é composta por contos e recontos que refletem de maneira poética a diversidade cultural e linguística de 12 povos pela perspectiva indígena feminina. Cada texto carrega consigo a resistência da ancestralidade e da luta pela preservação das tradições e dos direitos indígenas. As autoras, provenientes de diferentes povos, compartilham suas visões do mundo, desafios cotidianos e sabedorias ancestrais, tendo como objetivo resistir enquanto mulheres, para recontar, por meio da literatura, aquilo que foi negado e omitido pela perspectiva colonial.


Os contos lidos, fogem totalmente da estética e da forma dos cânones que conhecemos, pois trazem, além da ficção, experiências ancestrais e vozes cotidianas que compartilham outras configurações de modos de viver e operar. A beleza dos contos está justamente na conexão entre indígenas e a natureza. Não há, nesse sentido, relações de poder entre o ser humano e outros seres, contrastando com as relações que percebemos no mundo capitalista contemporâneo, que enxerga a terra e seus seres como fonte de extração de recursos e produtos. Para os povos originários, há uma conexão única de linguagens que estão além da letra e do entendimento eurocentrado, pois leem o tempo, conversam com a montanha, conhecem o sol como seu ancestral, nascem com onça e transformam-se em peixes.


Os textos abordam temas variados, como a conexão com a natureza, a espiritualidade, o amor, a resistência cultural, o papel das mulheres nas comunidades e as dificuldades enfrentadas na contemporaneidade. A questão da identidade é central, mostrando como as autoras navegam entre o passado e o presente, mantendo vivas as tradições enquanto dialogam com o mundo moderno.


Todos os contos me tocam de maneira singular, mas quero destacar dois, que, de certa forma, me fizeram lembrar de experiências que não vivi, mas que fazem parte dos elos que me ligam à minha ancestralidade. O primeiro é: Nãna e os potes de barro, da autora indígena Chirley Pankará. No conto, o sentimento que predominou no meu peito, durante a leitura, foi a saudade, saudade da terra, do barro, das histórias e ensinamentos. A parenta Chirley, além de mostrar suas lembranças da infância com as confecções de potes de barro, por meio da sabedoria de sua avó, nos mostra através dessa criação artística, ensinamentos sobre sobre o quão é importante a coletividade, ler a natureza, ter paciência, persistir e valorizar suas tradições, aspetos inexistentes nas relações capitalistas presente em nosso meio.


O segundo é o da autora Auritha Tabajara, o conto de Kauny e sua oncinha. Esse conto é incrível, o conheci pela voz da própria Auritha, quando participei de um evento remoto em 2021. Nele, percebemos aspectos importantíssimos como a resistência diante do opressor que busca extinguir nossa existência. Kauny juntamente com o ser que nasce em seu pescoço, a oncinha, são o símbolo dessa resistência. O narrador mostra como a personagem feminina é retratada como a guardiã dos segredos da floresta, sendo capaz de se comunicar com todos os seres. A narrativa gira em torno da resistência da personagem e de seu irmão às invasões do seu território e corpos. Kauny enquanto mulher indígena teve seu corpo cobiçado e desejado pela neurose ocidental, fator observado com o interesse do jovem rei pela menina. A personagem na história não é salva, nem pelo seu irmão e muito menos pelo rei, mas sim, pela conexão que tem com o sua oncinha, a conexão que tem como guardiã da natureza. O conto da onça pintada no pescoço de Kauny destaca a importância da conexão entre os seres humanos e a natureza, bem como a necessidade de respeitar o seus corpos e territórios.


Em suma, destaco a relevância dessas e de outras narrativas de mulheres indígenas que através de seus cantos e contos resistem à opressão e silenciamento e nos mostram outras compreensões de mundo, modos de viver, pensar e existir.

 
 
 
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